Não estava no script. Nem no coração, na agenda ou no check-list. Não estava.
Ninguém sonha em se separar um dia. Esvaziar o armário, dividir presentes ao meio, mudar de CEP, largar as chaves, dizer até mais, até breve, talvez nunca mais.
No engasgo de um choro nunca antes chorado, de uma dor nunca antes doída, você diz adeus e roga a Deus que te carregue no colo, pedindo a Ele (pelo amor Dele) que te empreste os ombros, sem direito à devolução.
Não, você não sonhou passar por isso. Muito antes que o último suspiro definisse o impensável, conforme as palavras do padre, a vida mesmo se encarregou de mudar o caminho e entortar o destino. Escoliose de alma no mais último grau, mudança de rota e de planos a partir da simples troca de palavras: ao invés do clássico “até que a morte os separe”, o inevitável “até que a vida os separe”.
E se uma separação já é dolorosa entre quatro paredes, chega quase a arrancar pedaço quando esbarra em outras coloridas paredes: as que acolhem abraços de Romero Britto e estantes com pelúcia, gibis, aviões, bonecas e carrinhos.
Estou falando do casal que decide se separar e – como se não bastasse toda a dor que neste momento os une – se depara com um sofrimento à parte: dar a notícia aos filhos, transformando toda uma vida compartilhada – domingos de sol, risos, bom dia, joelho ralado, despertador, balé, futebol, escola, sofá, pipoca, cobertor quentinho – em guarda compartilhada. Um pra lá, outro pra cá. E no meio desses dois, os frutos de um amor agora quebrado.
Tenho ouvido pais e mães perdidos, moídos, rasgados por dentro quando esbarram no sofrimento que causarão aos seus filhos quando os pequenos acordarem filhos de pais separados. Por esta dor e todas as outras, pela complexidade e seriedade que regam a aridez do tema, o assunto deve ser pensado, repensado, ponderado um milhão de vezes. Bom dia, aceita um chá?, respire fundo, conte até vinte. Histórias de amor não são feitas para serem perdidas como se perde a chave de casa. Mas se a separação é inevitável, dolorosamente aguardada, que se ponha a caminho.E que não falte sol no meio de tantas nuvens pesadas, escuras.
Os filhos continuarão filhos, inteiros e não pela metade, é certo que sim. Por mais que sofram, a dor não será maior do que ter os pais vivendo distanciamento e conflitos incessantes sob o mesmo teto, sustentando a velha tese “juntos porém separados”, numa velada ou explícita guerra fria.
Faça uma enquete e pergunte aos “filhos de pais separados” o que marcariam, se tivessem que escolher:
A) “Meus pais casados e brigando todos os dias, infelizes.”
B) “Meus pais separados e vivendo em paz, felizes.”
É letra B na cabeça e no coração.
“Mas o que dizer a eles?, “, perguntam-se os pais num contínuo de angústia, nó na garganta e dor no peito, como se tivessem que compartilhar o fracasso maior do mundo.
E é nessa hora que o abraço precisa vir colorido, apertado, aquecido, quase saltando da pintura.
“O papai e a mamãe NÃO são mais namorados, marido e mulher. Somos apenas bons amigos. Mas somos – e seremos para sempre – o pai e a mãe de vocês. Dentro do seu coração, meu filho, o papai e a mamãe estarão sempre juntos, um ao lado do outro, abraçando você e abençoando cada cantinho da sua vida.”
Indaiara says
Lindo texto, como sempre! Meus pais se separaram qdo eu tinha 17 anos e como doeu e às vezes ainda dói. E qdo eu vejo outros pais se separando, com filhos pequenos, meu coração dói, porque posso imaginar eventuais dificuldades que estão por vir. Mas o que dizer aos filhos? Achei linda a sugestão e leve. Parabéns!
Renata Feldman says
É de doer mesmo, Indaiara, independente da idade. Mas o amor pode ser muito maior que a dor, e isso é remédio pra alma.
Muito obrigada pela visita, volte sempre!
Cristiane says
Muito verdadeiro o seu texto.
Não sei se há dor maior que essa, essa da separação.
O fato é que até mesmo uma decisão como essa exige esforço dos pais, ainda unidos no amor dos filhos. Esforço para entenderem suas mágoas e para que, sobretudo, não transfiram suas frustrações para os filhos. Isso sim, prejudica. Separar não!
A busca da felicidade e da verdade é o melhor exemplo para os filhos!
Renata Feldman says
“… ainda unidos no amor dos filhos.” Lindo isso, Cristiane. É este olhar que enche de sol o caminho tortuoso de uma separação. Felizes dos filhos que podem seguir assim, inteiros e plenos de pai e mãe no coração.
Beijo, querida!
Pérsia says
Amiga querida!! Obrigada por conseguir traduzir sentimentos tão doídos de forma tão real… não tivemos filhos, mas imagino q seja assim mesmo. Um abraço afetuoso cheio de saudades!!!
Renata Feldman says
Amiga querida, quando a gente se encontra nas palavras, a dor parece se aconchegar no coração. Imagino o quanto de sofrimento você não andou respirando…. Mas se tivessem filhos, doeria ainda mais, muito mais.
Feliz de te ver por aqui!
Abraço carinhoso, cuide-se bem!
Cidinha Ribeiro says
Será que estou fragilizada demais ou era mesmo motivo pra chorar?
Coisa mais difícil, meu Deus!
Mas, passa. Como passa? Não sei, não vivi a experiência pra contar. Só sei que a vida segue, todos sobrevivem. Cada um a seu modo, quase sempre sobrando os cacos menores para os filhos colarem, aqueles mais difíceis de serem encontrados porque vão para debaixo do sofá, para detrás da porta. E sempre ficam as marcas de um remendo mal feito.
Lindo, e… comovente, minha flor!
Renata Feldman says
Ai, Cidinha. Na dúvida a gente senta e chora. O tema é mesmo angustiante, difícil, cortante como os cacos que vão parar debaixo do sofá.
Mas mesmo com todos os cortes, há de se sobreviver. Mesmo que não tenha passado por isso, sua capacidade de se colocar no lugar do outro é de uma lindeza que também comove a gente.
Beijo, minha querida!
SILVIA BRAFMAN says
OLÁ MENINA BONITA!
SAUDADES DE TER TEMPO PARA LER OS SEUS TEXTOS INCRÍVEIS.
A GENTE SEMPRE QUER PROTEGER OS FILHOS DA GENTE, NÉ? MAS NEM SEMPRE CONSEGUE. SE A GENTE PUDESSE, LIVRAVA-OS DE TODO O MAL. AGORA, COM NETOS, EU FICO MESMO É NA TORCIDA PARA QUE NUNCA TENHAM QUE PASSAR POR ISSO. MAS SE UM DIA – DEUS QUE NOS LIVRE E GUARDE – CHEGAR A HORA, QUE EU ESTEJA POR PERTO PARA DAR TODO O AMOR, CARINHO E FORÇA QUE VÃO PRECISAR. E VOU ME LEMBRAR DO QUE VOCÊ ESCREVEU, POIS É EM HORAS COMO ESSA QUE A GENTE FICA SEM SABER DIREITO O QUE DIZER. AI, VEM A RENATA E RESOLVE O PROBLEMA!! SÓ POSSO DIZER LEGAL, OBRIGADA!! VOCÊ É MESMO UM DOCE. MUITOS BEIJOS, SILVIA
Renata Feldman says
Silvia querida,
Saudade de você também, dessa energia contagiante!…
Sua torcida afetuosa de vó (dessas “mães com açúcar” que eu também conheço bem) já é, por si só, benção que protege e colo que acolhe.
Eu é que agradeço sua doce presença aqui no blog!
Abraço carinhoso!
Luísa says
Rê,
Obrigada pela leitura tão comovente dessa manhã! Creio que seja uma dor inimaginável, afinal de contas, ninguém se casa e constrói uma família pensando que haverá uma separação – pelo contrário! Acreditamos que será para sempre. Mas as pessoas mudam, o amor muda, e às vezes, deixa de ser amor.
O que importa é que os pequenos sejam bem amparados nesse momento tão delicado.
Beijo!
Renata Feldman says
Sim, Luísa. É a dor da quebra, do não-planejado, não-sonhado, não-desejado, em meio a tantos “sins” que promete o amor. É o contraponto do “para sempre” versus o “nunca mais”, tão difícil de viver.
Eu que agradeço sua visita, querida.
Beijo!